PEDRO CACHAPUZ
QUANDO NÃO BEBEMOS DA MESMA ÁGUA

I
«Quando não bebemos da mesma água» faz parte de uma lista de títulos das exposições em projecto desde 2013. Uma vez mais, estamos perante um título literário que evita o literal, por via de uma poética cuja metáfora, neste caso, abre a actividade simbólica à realidade social e política do país e da Europa, na medida em que expressa quatro anos de políticas de austeridade cujo resultado foi: «uma clara transferência de riqueza da população portuguesa para o sistema financeiro através do pagamento de juros da dívida, conduzindo assim a um empobrecimento real dos portugueses e a uma diminuição do seu rendimento e do valor do trabalho em Portugal» (1). Mas um título que também pensa a obra aqui exposta visto que o desdobramento em «Biombo» (2008/2015) decorre de uma repetição que inaugura uma diferença. Neste sentido, «Quando não bebemos da mesma água» inscreve a dissemelhança entre os dois painéis que formam «Biombo», apesar de esta ser resultante de uma variação trabalhada a partir da ordem de uma constante.

II
Uma qualidade que não se efectivou na manufactura da réplica em «O nascimento precoce de uma magnólia: para a Ilda», uma amiga que falecia. Naquela exposição (2), por mim realizada no Espaço Campanhã, Tabacaria - Galeria de Papel, Porto, em 2010, a reprodução manual teve em vista questionar os meios de produção e o carácter único e irrepetível da obra de arte através do cruzamento entre o desenho e a fotografia que sugeriu a reprodução do desenho até ao infinito, uma ideia testemunhada na cópia de cada desenho que constitui a série Arquitectura. Sem deixar de questionar os meios de produção, em «Biombo», da série Doméstico, uma unidade é desdobrada em dupla-face onde cada uma destas é instalada no espaço real. Um valor expositivo que situa o espectador na condição de estar entre dois campos visuais e não só à frente de um: o espectador está dentro da obra. Como sabemos, uma condição do espectador que se associa à experiência do espaço na arquitectura. A ideia da arquitectura, todavia, não se diminuiu à imagem do edifício que ofereceu os motivos da janela, da escada e da coluna, nos desenhos da série Arquitectura, porque dizer arquitectura implica pensar o devir de uma sociedade. É esta interpretação da arquitectura que estando sempre no mundo e com a vida, uma vez mais importa esclarecer quando observamos «Biombo» que convoca o quotidiano da casa onde radica o objecto doméstico.

III
«Biombo» partilha com a arte como ideia a importância da premissa na práxis artística de acordo com uma série de critérios fundamentais que dirigiram a sua realização: o enquadramento da forma correlativo à estrutura do painel; o loop da frase de cor em cada um dos graus da escala tonal; quatro listas de cor nas figuras ao centro e três nas figuras laterais; e a alternância do quente/frio nos eixos vertical e horizontal. Tal como nos desenhos da série Arquitectura, «Biombo» trabalha com uma síntese da figuração e abstracção; por efeito, da representação e apresentação, da redução do abstracto e o referente figurativo que devolve o desenho à realidade num movimento que contradiz o não ser mimético da abstracção. A práxis da abstracção que define a arte enquanto arte como arte - um expoente da autonomia da arte - e aproxima a arte da suposição de uma linguagem da arte sem conhecer o signo da linguagem e, muito menos, uma língua que possa falar de si mesmo e de todas as outras linguagens enquanto metalinguagem.

IV
«Quando não bebemos da mesma água», é uma exposição concebida no interior de um ciclo iniciado com «O nascimento precoce de uma magnólia: para a Ilda» e, como tal, estas duas exposições estão articuladas de modo a abrir um porvir no meu trabalho que se conduz para uma tábula rasa já anunciada por «S` Título» (2007/2014), exposta em Abril do ano de 2014, na exposição colectiva «Sem Quartel/Without Mercy», no Sismógrafo, Porto. Esta obra guarda uma afinidade com «Biombo» ao materializar um jogo de espelhos; contudo, compreender a dupla-face de «Biombo» à luz de um jogo de espelhos tem que considerar o ponto de vista serial que transcendeu a réplica pois no limite a cor muda.

Pedro Cachapuz
Porto, 14 de Março de 2015

 

1 - São José Almeida, «2015», in jornal Público, 03 de Janeiro de 2015.
2 - Cuja sinopse diz: «A exposição é constituída pela série Arquitectura, tema representado por via da imaginação, e nomeia três elementos do edifício: a janela, a escada e a coluna. Cada um desses motivos proporciona um desenho mediado por princípios associados à abstracção e à figuração. Tais condições engendram qualidades estéticas integradas em simultâneo em todos os desenhos que são objecto da reprodução manual de réplicas, um processo que questiona os meios de produção e o carácter do original» (Pedro Cachapuz, 2010 - revisto em 2014).