MARTA BERNARDES ACHAMENTO

O haiku, enquanto forma poética orientada pela síntese, revelou-se a fonte primordial de toda uma estética, modelo acabado no que respeita a apresentação de imagens concretas, despidas de comentários e de pontos de vista pessoais.

Se por um lado, no haiku de Catarina Nunes de Almeida, nos deparamos com um desejo de proximidade ao cânone japonês clássico, por outro, na grande maioria das composições, teremos ja uma apropriação subversiva. Os tropos tradicionais japoneses (a lua, os pássaros, o rio, a alba, as arvores) cruzam-se com uma visão ancestral do paraíso, assumindo por vezes uma aproximação a intemporal Carta de Pêro Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil. O nascimento de um Novo Mundo pressupõe uma rectificação do Velho Mundo – representa mais do que um marco para a Historia, ela funda uma medida na descoberta do homem pelo homem e, mais do que nunca, volta a unir o percurso do humano a instancia do divino. Essa poderia ser a definição mais profunda deste Achamento.

Entretanto, a actualização da herança literária e do imaginário colectivo acrescenta a acção um tempo e um espaço do domínio do real, o que afasta o haiku da sua qualidade exclusivamente ascética, deslocada de tudo. Esta e uma poesia que estabelece um pacto com o aberto: um haiku e sempre um objecto inconclusivo, que impele a participação do leitor. Num haiku, escreve Octavio Paz em Los signos en rotacion, estamos perante um «voluntário inacabamento», uma espécie de apologia da imperfeição que não deve ser refreada nem por quem escreve, nem por quem lê. A chave interpretativa do haiku esta muito mais ligada a sugestão, a alusão. A base desta poética reside, simultaneamente, numa certa “atitude” assumida pelo poeta, associada de forma extraordinária ao despojamento do espirito, a simplicidade do meio envolvente, ao usufruto dos sentidos, ao equilíbrio entre a voz e o silencio. De acordo com Roland Barthes, o que ressalta deste devir essencial, musical, do fragmento e a sua substancia evocativa – que desce dum panorama mais amplo e objectivo para o pormenor mais ínfimo e mais fugaz – a fim de sugerir toda uma floresta de sensações e de experiências em permanente actualização.

Mantendo a homenagem a matriz japonesa, as ilustrações de Marta Bernardes possibilitam a transformação da escrita em ideograma, como acontece na poética original. Funcionam como metáforas gráficas, que ligam os poemas ao pendor visual que tao bem caracteriza as poéticas do Extremo Oriente. Estas ilustrações funcionam, pois, como signos que possibilitam “uma visão” do poema – o impulso livre e o monocromatismo do traço são ainda marcas da homenagem a essa estética longínqua. Assim, o peculiar prazer visual, que advém do primor do caligrafo, não se perde ao longo da obra, ainda que a escrita em português obedeça, naturalmente, a uma lógica fonética.

Estes são, na verdade, poemas escritos a quatro mãos, porque a forma escrita e inseparável da sua tradução visual e a ilustração apenas sobrevive com a ressonância do verbo, isto e, quando a escrita circula livremente entre o olhar e a voz. Assim, aquilo que aqui se expõe na galeria MCO, e o material bruto, imperfeito e domestico, da preparação desses Desenhos – Caligramas de Marta Bernardes. Oferecidos ao visitante como uma viagem pelo trabalho nu, delicado, cheio das marcas das falhas e das tentativas, das mãos indecisas, plenas de macula, da fragilidade dos gestos e dos materiais, pensados na sua tosca invenção para servir o milagre gráfico de um livro, mas aqui mostrados, como numa confissão, na sua mais inteira verdade e candura.

Marta Bernardes e Catarina Nunes de Almeida, 2015

Marta Bernardes
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