É imperioso começar por chamar a atenção para o lado infectado do Belo na pintura de António Melo. Sim, estamos perante telas com uma espécie de açúcar primeiro, que nos atrai pelo aspecto onírico, um aspecto que se torna imediato pela sedução cromática e pela alusão a referências até líricas, como são as árvores, os ovos (e por sua vez os pássaros, que não surgem), a água, ou as montanhas. Estamos mesmo perante telas que, por vezes, entram nos referentes do mundo da banda desenhada, com figuras algo divertidas ou simplesmente ingénuas. Mas não nos podemos deixar enganar, esse açúcar vai inquinado, ferido de vários modos num jogo inteligente de citações que nos obriga a descer mais abaixo nos círculos de um pequeno inferno. É manifesto que deparando-nos pela primeira vez com um trabalho deste pintor somos seduzidos pela cor fosca que escolhe, uma espécie de cor em neblina constante que nos atira para esse espaço de sonho onde tudo pode acontecer. E é também certo que essa primeira abordagem é sempre prazenteira, provando que a leitura inicial da obra se prende ao isco bem elaborado de nos fazer crer que nos debruçamos diante de uma imagem toda ela benigna. Pois esse isco existe para que nos surpreenda no passo seguinte, porque a tela é sempre um fragmento narrativo onde se abalam essas ideias prévias e se constrói algo que na verdade pertence ao disfórico, ironizando grandemente com o lado negro do Belo. Ainda que António Melo opte muitas vezes por inserir figuras que esperaríamos ver em pranchas de banda desenhada, gerando um estranho efeito de mescla, fá-lo mantendo um enfoque numa certa perigosidade, e a mescla existe exactamente porque lhe é natural investir num retrato de uma natureza luxuriante, impressionante como era a natureza pintada noutros tempos, diria que a partir do seu lado mais dramático. É o dramatismo do cenário e o divertido de algumas figuras que pode começar por nos indiciar algum incómodo na tela, uma espécie de desajuste que faz com que a obra pareça falar duas linguagens distintas e procurar caminhos opostos para se explicar.
in O suspense, sobre o trabalho de António Melo
valter hugo mãe, 2008